domingo, 5 de dezembro de 2010

Rio de Janeiro: crimes e imagens



Segue texto publicado no Diário Catarinense 


 http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3130440.xml&template=3898.dwt&edition=16023


ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ
Professor da UFSC e pesquisador CNPq



A intervenção das forças policiais e armadas em favelas da cidade do Rio de Janeiro, nos últimos dias, tem sido vista como uma operação de guerra do bem contra o mal. O farto material jornalístico, em especial as imagens propaladas pela televisão e pela internet, parecem não deixar dúvidas de que se trata de uma batalha pela libertação de regiões endemicamente empobrecidas da cidade tida como maravilhosa, dominadas pelo tráfico de drogas, seus negócios e sua maneira de conduzir, na ausência do Estado, as comunidades. Da silenciosa e humilhante subserviência à adesão orgulhosa, parece demasiadamente improvável que um morador daquelas áreas de complexa organização geográfica e política possa estar fora do desatino aterrorizante promovido pelas quadrilhas de traficantes.


A associação dos episódios no Rio de Janeiro com a Segunda Guerra Mundial e outras guerras corresponde a uma memória imagética que nos bombardeia e oferece conteúdo, roteiro e contornos às projeções e expectativas que alimentamos sobre os conflitos bélicos. A conflagração europeia que terminou há 60 anos e a Guerra do Vietnã são material privilegiado para toda uma cinematografia que, com diferente matizes, nos acostumou com narrativas frequentemente calibradas por traços maniqueístas.

Algo novo surgiu, no entanto, há duas décadas. No começo dos anos 1990, a Guerra do Golfo Pérsico foi programada com hora e local para seu início, coincidindo com o enorme aparato televisivo a postos para sua transmissão. Depois da estetização da política e da transformação do teatro de operações de guerra em set de filmagem, a transmissão ao vivo. Sem cheiro de sangue, sem os gritos desesperados, as imagens do Rio de Janeiro, como cartões-postais às avessas, têm algo de irreal que talvez ajude a acobertar outras questões.

Para além das perguntas que costumeiramente não são feitas (Quem são os financiadores do “movimento”? Qual é a responsabilidade da “classe média” consumidora na manutenção do tráfico e na corrupção policial? Por que o Estado tanto demorou para “libertar” as regiões ocupadas?), pouco se falou, nas transmissões televisivas, das milícias, estruturas do crime organizado nascidas no coração do aparato policial do Estado, com forte presença na política eleitoral e ramificações econômicas de diversos tipos, ainda que centradas na mafiosa prática de extorsão.

Tomando parte dos territórios do tráfico, os milicianos impõem uma nova forma, não menos aterrorizante, de domínio das áreas pobres do Rio de Janeiro. Tema do recente filme Tropa de elite 2: o inimigo agora é outro, elas estão fartamente documentadas e apresentadas de maneira ficcional do livro Elite da Tropa 2, escrito pelo antropologo Luiz Eduardo Soares, pelos ex-membros do Bope, o Bope da Polícia Militar, André Batista e Rodrigo Pimental, e pelo ex-policial civil Cláudio Ferraz.

O enorme detalhamento das operações milicianas ganha força em Elite da Tropa 2 na narrativa pessoal de um dos personagens, investigador da Polícia Civil, cuja vida vai derrocando no compasso do crescimento do crime organizado.

De homem de letras fracassado e marido constrangido frente à carreira bem sucedida da mulher, a um derrame provocado pelas tremendas demandas de ser policial honesto e empenhado no combate ao crime organizado, a trajetória do já ex policial culmina com novas narrativas, uma reinvenção do trabalho de combate a criminosos, agora como assessor parlamentar de um deputado envolvido na defesa dos direitos humanos e em conflitos amorosos mais do que comuns.

Renascer, reinventar novas formas de resistência. Parece ser esta a força que o livro anuncia, processo que deve contar com o debate público para o qual a imprensa sobremaneira contribui, investigando e dando publicidade a problemas que são de todos. Mas seria bom que dispensássemos as bravatas e o clima de thriller policial. “Sarajevo é brincadeira, aqui é o Rio de Janeiro”, diz a canção do Planet Hemp. Que ela se torne cada vez mais a lembrança de um tempo que já passou.


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