sábado, 15 de janeiro de 2011

Futebol, liturgia e catarse

Paixão e crença na felicidade proporcionada pela vitória movem as torcidas catarinenses


Começa hoje uma nova edição do Campeonato Catarinense de futebol, e com ela renovam-se as expectativas de torcedores de todo o Estado em relação aos seus clubes de devoção. Trata-se da abertura de um ano futebolístico bastante peculiar. Os dois times de Florianópolis, Avaí e Figueirense, disputarão, depois do torneio regional, o certame nacional em sua primeira divisão, e nada menos do que quatro outros clubes representarão o Estado em diferentes séries nacionais, da B à D. O futebol é uma liturgia diária, como disse Detlev Claussen, e o reinício de seu calendário permite desfrutar dessa religiosidade mundana, assim como também pensar sobre esse fenômeno tão importante na sociedade brasileira.


A presença de vários representantes catarinenses nos campeonatos nacionais faz lembrar um momento de nossa história recente, a ditadura cívico-militar brasileira. Nos 1970, o futebol brasileiro, depois de João Havelange conduzir-se à presidência da Fifa, órgão máximo do futebol mundial, em 1974, passou a ser comandado por um almirante e boa parte da comissão técnica do selecionado brasileiro naqueles anos era formada por militares. Em um momento em que a oposição tolerada pelo regime, abrigada no MDB, avançava eleitoralmente, o futebol também foi veículo para a dominação autoritária. Além dos “senadores biônicos” que garantiriam a maioria governista, dizia-se que “onde a Arena vai mal, mais um time no nacional”. Santa Catarina chegou a ter vários representantes em uma das edições do Brasileirão, cuja confusa fórmula abarcava mais de uma centena de clubes.


Mas, como lembra José Miguel Wisnik, naquele que é provavelmente o melhor livro sobre futebol jamais escrito em língua portuguesa (Veneno Remédio, Companhia das Letras, 2008), se a ditadura procurou se apossar do futebol, este era maior do que ela, de forma que seu significado não se esgota na manipulação. O futebol não é apenas “ópio do povo”. Tampouco é tema exclusivo de fanáticos ou eventuais torcedores, mas assunto de debate intelectual e matéria de boa literatura, entre outras formas artísticas que o tomam como conteúdo e cenário. De Graciliano Ramos e Gilberto Freyre a Décio de Almeida Prado, de Umberto Eco a Paul Auster, passando por Salman Rushdie, chegando a escritores como Michel Laub, Tabajara Ruas, Cintia Moscovich e Marçal Aquino, muitos têm tomado o futebol como tema ou moldura para suas obras. Nelson Rodrigues é o maior de todos, capaz que foi de ver o jogo como tragédia e inventar no Brasil a crônica esportiva moderna.


Material para as artes plásticas, a ópera e a dança, o futebol brasileiro aparece ainda timidamente no cinema, ainda que não se possa esquecer os ficcionais Boleiros: Era uma Vez o Futebol, de Ugo Giorgetti, e Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, e os documentários Passe Livre (Oswaldo Caldeira), Futebol (João Moreira Salles e Arthur Fontes) e o célebre Garrincha, Alegria do Povo, cinema verdade sob a direção de Joaquim Pedro de Andrade.


A todo esse caráter expressivo do futebol, capturado pelas artes, corresponde a experiência do aficionado que vai ao estádio para viver um momento absolutamente distinto daquele frente à televisão em dias de jogo. É nas impressões sensoriais do frequentador das arquibancadas que o futebol se revela de forma singular, em direta relação não apenas com o jogo em si, mas com a pluralidade humana que, malgrada a exclusão social (os espetáculos, com seus preços proibitivos, já não recebem os mais pobres), ainda segue presente. Com toda a importância da televisão a formar público e vender espetáculo, nada se compara à experiência corporal da presença nos estádios. Como prolongamento do olho humano, tal como a definiu Walter Benjamin, a câmera aproxima e amplia a imagem. Também esquadrinha-a e delimita-a para o telespectador. Quando um comentarista de Florianópolis diz que “todos os caminhos levam” à Ressacada ou ao Orlando Scarpelli, em dias de grandes jogos, seus ouvintes sabem do que ele está falando.


Torcidas organizadas, com seus cantos, coreografias e pinturas que lembram a guerra, amigos de arquibancada, famílias inteiras, homens de todas as idades e um numeroso contingente de mulheres torcem, insultam, enervam-se com os fracassos do time, glorificam-no nas vitórias, reverberando conquistas passadas e êxitos futuros, em típica narrativa mitológica.


Já não vivemos sob ditadura e o futebol é acontecimento globalizado. Não é diferente para os catarinenses, que poderão desfrutar dos jogos observando a performance de inúmeros jogadores formados fora do Estado, alguns deles oriundos de outros países. Deles cada torcedor exigirá a máxima performance, a superação dos concorrentes, e também “honra” ao envergar o uniforme do clube.

O que é belo espetáculo e motivo de alegre fruição às vezes descamba, no entanto, para sentimentos e expressões xenófobas, chauvinistas, racistas e homofóbicas. Não precisamos deles e nem alimentar confrontos estúpidos, para além da rivalidade que o jogo comporta. Teremos duas vezes o “derby” entre Avaí e Figueirense no campeonato que ora começa, um igual número na Série A nacional, um luxo para Santa Catarina.

Desfrutemos do futebol como jogo, de sua expressividade estética. Basta isso.

* Alexandre Fernandez Vaz é professor de Ciências da Educação na UFSC


ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ
Texto publicado no Diário Catarinense em 15.01.2011

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