sábado, 13 de agosto de 2011

Em nome do PAI


Em “Tetro”, Copolla oferece uma súmula dessa questão tão ardente que é o conflito familiar


O cinema, assim como a literatura, está repleto de tramas em que a figura do pai é determinante na narrativa, mesmo que muitas vezes pareça ausente mas permaneça, de forma latente, como objeto demandado. É o caso de “Tetro”, filme de Francis Ford Coppola, recém-disponível em DVD no Brasil, depois de ser visto de forma muito breve nos cinemas a partir do final do ano passado. Neste domingo, em que se comemora o Dia dos Pais, vale um comentário sobre ele.


Tudo começa com a chegada de um jovem marinheiro inglês a Buenos Aires, onde encontrará o irmão por parte de pai, que já não vê há uma década. Este, Tetro, é um dramaturgo frustrado, em peremptória e obstinada recusa – em recordar, em concluir um texto, em falar espanhol – saído de uma clínica psiquiátrica e reticente em relação ao encontro com o indesejado visitante, visto como um ameaçador retorno do passado, a trazer velhas cartas e perguntas embaraçosas. Tetro é casado com uma médica que o atendera quando da internação, e esta é a mediadora dos conflitos gerados pela incômoda presença do irmão – que se revelará depois mais que isso – e com todo o entorno que, mesmo tornado familiar com os anos, segue sendo-lhe comodamente distante.


Enclausurado em seu quarto, com eventuais deslocamentos para a sala e a varanda, ou encontrando seus amigos derrotados nos arredores do velho apartamento, Tetro passa os dias a recusar – já no próprio nome, feito de um fragmento do sobrenome e referência à tragédia – a figura do pai, maestro de renome internacional, ególatra empedernido, a essas alturas à beira da morte. É a tremenda presença paterna, quase sempre em perturbadora lembrança, já que distante no tempo e no espaço, que dá tom à narrativa. Cinema sobre a família, como já fora “O Selvagem da Motocicleta” e a trilogia “O Poderoso Chefão”, também de Coppola, “Tetro” oferece uma súmula dessa questão tão ardente que é o conflito com a paternidade.Não é para menos. Costumamos ouvir que “Deus” é nada menos que “pai”. Daí a pensar que ser pai é operar como Deus, não falta muito, e é ele, então, que aparece como figura imaginária ou real a refazer constantemente as balizas do poder e da censura civilizadora, contra as quais, aliás, há que se rebelar em algum momento. Patriarcado que já não parece inquebrantável em nossa contemporaneidade, colocado sob risco em novas configurações familiares, talvez menos ortodoxas, mais plurais e, quem sabe, menos pesadas. Há que se ver, com atenção, para onde se deslocam os dispositivos de interdição que seguem regendo a cultura em nossa tradição.


A força da imagem paterna é hoje ainda, no entanto, enorme. Não é casual que governantes populistas anunciem-se como “pais do povo”, nem que a derrocada do pai em tempos de crise seja responsabilizada pelo apego a personagens em que projetamos fantasias de força e proteção, a quem entregamos nosso futuro, mesmo ao custo de nossa autonomia e de nossa liberdade. É o caso das ditaduras e também de suas versões ainda mais extremadas, as experiências totalitárias, que parecem, para muitos, responder a um clamor por segurança, aquele mesmo que reforça a infantilização e decepa a participação na vida pública.Locação e fotografia


Mas não é Deus, nem a política, que “Tetro” busca nessa belíssima película que é também sobre uma cidade-refúgio, vista nostalgicamente, quase sempre de um ponto de vista do apartamento antigo de primeiro piso e das ruas próximas do bairro, escuras, mesmo durante o dia. A fotografia reduzida em preto e branco (as imagens foram captadas em cor), a câmera constantemente fixa e seus planos fechados, potencializam uma intimidade levemente triste que faz encontrar os personagens, o que o tom algo bizarro de algumas sequências apenas potencializa. Os diálogos entrecortados entre os irmãos vão sendo povoados pela recordação, aos trancos, das angústias de uma família que não pôde segurar a si mesma, marcada, em especial na memória de Tetro, por um violento trauma.


É tremendo o esforço por parte de Tetro e do irmão, mesmo que nem sempre reconhecido, de conciliação, em tentar encontrar um fio que ainda pudesse oferecer a expectativa a uma vida dilacerada pela irresponsabilidade paterna. Logo no início do filme lê-se em um muro escuro da noite bonairense: “No sueltes la soga que me ata a tu alma”. É terrível dar-se conta de que a felicidade, ou pelo menos a esperança de que ela seja possível, vai se dar apenas com a morte simbólica do pai.


Se a evocação do passado aparece de forma metanarrativa no texto que não pôde ser escrito até o fim, o que será feito por aquele que o espectador supõe ser o irmão de Tetro, é apenas ao vê-lo concluído que a tragédia encontrará seu momento catártico, tanto no festival distante de Buenos Aires, na longínqua Patagônia, quanto no enterro do pai, em uma elipse ao final do filme. Emerge a revelação da traição paterna, esta mesma que mantém Tetro preso ao passado e à eternidade da infância. A violenta inversão da cena edípica é insuportável para ele, como seria para qualquer filho. Talvez seja demais pedi-lo, mas eis aí tudo o que um pai não pode fazer: deixar que um filho se sinta abandonado por ele.

*Alexandre Fernandez Vaz é professor da UFSC e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

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