FONTE: A NOTÍCIA
“Avanti Morocha!”, algo como Dá-lhe, Morena!”, dizia um cartaz pregado, em fevereiro último, na fachada de uma quitanda em La Boca, Buenos Aires, antigo bairro portuário e boêmio, hoje coalhado de turistas brasileiros em busca do “autêntico” tango. A imagem trazia a presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner de perfil, elegantemente vestida, passando em revista uma sequência de bandeiras de países-membros da ONU. O slogan é título de uma canção bastante popularizada pela interpretação do grupo Caballeros de la Quema e foi tema da campanha de Cristina à Presidência. É em La Boca, aliás, que fica o mítico Estádio La Bombonera, do Boca Juniors, time de futebol mais popular do País, cuja torcida leva a campo, jogo após jogo, uma bandeira peronista, a do Partido Justicialista, de Cristina, mas também de uma parte de seus opositores, o que é mostra da complexa cultura política local.
Como costuma acontecer, o clima na Argentina é efervescente nas ruas, nos movimentos sociais, na imprensa, no debate intelectual. O forte apoio de várias entidades a Cristina, do sindicato que patrocinou o tal cartaz até a Associação das Mães da Praça de Maio, combina-se com a enorme oposição que os grandes conglomerados jornalísticos fazem a ela. No campo intelectual, as forças se dividem em clima de superclássico entre Boca Juniors x River Plate, pendendo a força, no entanto, para os kirchneristas do Carta Abierta, como Horacio González, diretor da Biblioteca Nacional. Ele é um “intelectual K”, ao qual se opõe, por exemplo, Beatriz Sarlo, uma das grandes ensaístas da América Latina e colunista do diário “Clarín”, signatária do movimento Plataforma 2012. Todos – ensaísta, jornal e movimento – são notadamente “anti-K”.
Foi também durante o mês de fevereiro que a diplomacia argentina, sob a liderança de Cristina, elevou o tom da disputa que o país há quase dois séculos trava contra a Grã-Bretanha pela soberania das Ilhas Malvinas. Em meio ao fogo cruzado de acusações, os britânicos chamaram a pretensão argentina de “colonialista” – o que soou tolo, vindo de quem veio – enquanto nossos vizinhos denunciavam que o Atlântico Sul estaria sendo militarizado pelos ingleses, com a possível instalação de armamentos capazes de até mesmo alcançar o Brasil.
Como costuma acontecer, o clima na Argentina é efervescente nas ruas, nos movimentos sociais, na imprensa, no debate intelectual. O forte apoio de várias entidades a Cristina, do sindicato que patrocinou o tal cartaz até a Associação das Mães da Praça de Maio, combina-se com a enorme oposição que os grandes conglomerados jornalísticos fazem a ela. No campo intelectual, as forças se dividem em clima de superclássico entre Boca Juniors x River Plate, pendendo a força, no entanto, para os kirchneristas do Carta Abierta, como Horacio González, diretor da Biblioteca Nacional. Ele é um “intelectual K”, ao qual se opõe, por exemplo, Beatriz Sarlo, uma das grandes ensaístas da América Latina e colunista do diário “Clarín”, signatária do movimento Plataforma 2012. Todos – ensaísta, jornal e movimento – são notadamente “anti-K”.
Foi também durante o mês de fevereiro que a diplomacia argentina, sob a liderança de Cristina, elevou o tom da disputa que o país há quase dois séculos trava contra a Grã-Bretanha pela soberania das Ilhas Malvinas. Em meio ao fogo cruzado de acusações, os britânicos chamaram a pretensão argentina de “colonialista” – o que soou tolo, vindo de quem veio – enquanto nossos vizinhos denunciavam que o Atlântico Sul estaria sendo militarizado pelos ingleses, com a possível instalação de armamentos capazes de até mesmo alcançar o Brasil.
De volta a pauta
A ofensiva retórica argentina recolocou na agenda internacional o traumático tema, a poucas semanas do aniversário de 30 anos da ocupação argentina das Falklands, completados há poucos dias. Não deixa de ser irônico que a disputa tenha se reaquecido no momento em que estreava nos cines bonaerenses o filme “A Dama de Ferro”, em que Meryl Streep interpreta Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa que mandou responder duramente à ofensiva, assim que a bandeira argentina foi hasteada em Port Stanley, capital do arquipélago, logo rebatizada de Puerto Argentino. Ironia que se completa porque a Inglaterra é, para a aristocrática burguesia dos vizinhos, um país modelo, seja na relação que seu maior escritor, Jorge Luis Borges, teve com a língua inglesa, seja na presença de artefatos culturais como o rúgbi e o hóquei na grama, esportes britânicos muito praticados na margem direita do Prata.
Se há divergências quanto a Cristina e seu governo, uma quase unanimidade argentina é encontrada, sem sombra de dúvida, em relação ao direito sobre as Malvinas. “Las Malvinas siempre fueron, son y siempre serán argentinas! Eso aprendí en la escuela”, dizia, não sem boa dose de ironia, uma velha senhora que morava no Centro de Florianópolis, naqueles primeiros dias de abril de 1982, pouco depois do discurso de Leopoldo Galtieri, general que liderava a junta ditatorial de governo argentina, que anunciou do balcão da Casa Rosada a reconquista das ilhas. Vivendo havia muitos anos no Brasil, mas nascida e tornada adulta no país natal, minha avó foi formada na escola pública argentina, dispositivo que criou uma nação e incorporou levas e levas de imigrantes em um projeto modernizador. Opositora ferrenha da ditadura, crítica severa da maneira com que as ilhas voltavam para o país, repetia, no entanto, como uma prece, que as Malvinas “son nuestras”.
Se há divergências quanto a Cristina e seu governo, uma quase unanimidade argentina é encontrada, sem sombra de dúvida, em relação ao direito sobre as Malvinas. “Las Malvinas siempre fueron, son y siempre serán argentinas! Eso aprendí en la escuela”, dizia, não sem boa dose de ironia, uma velha senhora que morava no Centro de Florianópolis, naqueles primeiros dias de abril de 1982, pouco depois do discurso de Leopoldo Galtieri, general que liderava a junta ditatorial de governo argentina, que anunciou do balcão da Casa Rosada a reconquista das ilhas. Vivendo havia muitos anos no Brasil, mas nascida e tornada adulta no país natal, minha avó foi formada na escola pública argentina, dispositivo que criou uma nação e incorporou levas e levas de imigrantes em um projeto modernizador. Opositora ferrenha da ditadura, crítica severa da maneira com que as ilhas voltavam para o país, repetia, no entanto, como uma prece, que as Malvinas “son nuestras”.
Caráter simbólico
Não há razões históricas que possam sustentar, em definitivo, o direito sobre as ilhas, ainda que a proximidade territorial e as disputas seculares entre Espanha e Inglaterra sejam argumentos importantes em favor dos reclamantes. Interessa, no entanto, o enorme caráter simbólico e de mobilização em torno delas, que aparecem, no imaginário argentino, como mito nostalgicamente perdido. Na escola se ensina que as ilhas são parte do território nacional, compondo a província Tierra del Fuego, Antártida y Islas del Atlántico Sur; na imprensa diária, a previsão do tempo anuncia as condições climáticas de todas as províncias, sem esquecer de dizer das nevascas e ventanias no arquipélago.
Três décadas depois da contenda militar, há um duplo mal-estar entre os argentinos. Pela óbvia perda do território, claro, mas também pela forma com que o êxtase tomou conta de quase todos, em pleno declínio da ditadura militar que dominava o país desde 1976. A massa que recebeu com júbilo o discurso de Galtieri foi a mesma que poucos dias antes havia marchado pelo Centro da capital manifestando-se contra a ditadura. A ocupação do arquipélago pegou não apenas a comunidade internacional de surpresa, mas os próprios argentinos, que ficaram eufóricos com a boa nova. Meus amigos que faziam a colimba, como lá é chamado o serviço militar, preparavam-se para uma guerra contra o Chile, prometida desde as escaramuças na fronteira Sul dos dois países. Dormiram com um inimigo, acordaram com outro, aquartelados para uma possível viagem a Comodoro Rivadavia, caserna mais avançada em território continental, e dali possivelmente para as ilhas. Por sorte, não chegaram a viajar. Quem visita o Parque Malvinas, em La Plata, capital da província de Buenos Aires, onde ficava o regimento daquela cidade que forneceu soldados para a guerra, ou qualquer outro dos monumentos que lembram os mortos nas ilhas, não fica menos que estarrecido com as centenas de rostos juvenis que surgem nas fotos. Meninos imberbes, com cara de que iam ao cinema ou ao futebol, namorar, não soldados preparados para enfrentar, sob frio antártico, o poderio bélico britânico.
Supõe-se que Leopoldo Galtieri estava embriagado quando pronunciou o discurso de “reconquista” das Malvinas, como já acontecera outras vezes em ocasiões oficiais. Não sei se estava, mas, no final das contas, não era preciso o consumo de álcool para tamanho desvario e obscenidade, se considerarmos o caráter criminoso, inominável, terrorista do regime que os militares instalaram na Argentina. O crime de levar o país a uma guerra estúpida foi apenas o corolário da insanidade que durou sete anos. Bem, pelo menos os argentinos levaram vários dos seus ditadores ao julgamento à condenação. Poderíamos tomá-los como exemplos.
* Alexandre Fernandez Vaz é professor da UFSC e pesquisador do CNPq / alexfvaz@uol.com.br
Três décadas depois da contenda militar, há um duplo mal-estar entre os argentinos. Pela óbvia perda do território, claro, mas também pela forma com que o êxtase tomou conta de quase todos, em pleno declínio da ditadura militar que dominava o país desde 1976. A massa que recebeu com júbilo o discurso de Galtieri foi a mesma que poucos dias antes havia marchado pelo Centro da capital manifestando-se contra a ditadura. A ocupação do arquipélago pegou não apenas a comunidade internacional de surpresa, mas os próprios argentinos, que ficaram eufóricos com a boa nova. Meus amigos que faziam a colimba, como lá é chamado o serviço militar, preparavam-se para uma guerra contra o Chile, prometida desde as escaramuças na fronteira Sul dos dois países. Dormiram com um inimigo, acordaram com outro, aquartelados para uma possível viagem a Comodoro Rivadavia, caserna mais avançada em território continental, e dali possivelmente para as ilhas. Por sorte, não chegaram a viajar. Quem visita o Parque Malvinas, em La Plata, capital da província de Buenos Aires, onde ficava o regimento daquela cidade que forneceu soldados para a guerra, ou qualquer outro dos monumentos que lembram os mortos nas ilhas, não fica menos que estarrecido com as centenas de rostos juvenis que surgem nas fotos. Meninos imberbes, com cara de que iam ao cinema ou ao futebol, namorar, não soldados preparados para enfrentar, sob frio antártico, o poderio bélico britânico.
Supõe-se que Leopoldo Galtieri estava embriagado quando pronunciou o discurso de “reconquista” das Malvinas, como já acontecera outras vezes em ocasiões oficiais. Não sei se estava, mas, no final das contas, não era preciso o consumo de álcool para tamanho desvario e obscenidade, se considerarmos o caráter criminoso, inominável, terrorista do regime que os militares instalaram na Argentina. O crime de levar o país a uma guerra estúpida foi apenas o corolário da insanidade que durou sete anos. Bem, pelo menos os argentinos levaram vários dos seus ditadores ao julgamento à condenação. Poderíamos tomá-los como exemplos.
* Alexandre Fernandez Vaz é professor da UFSC e pesquisador do CNPq / alexfvaz@uol.com.br
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