domingo, 9 de dezembro de 2012

 
9 de dezembro de 2012. | N° 1702

LITERATURA

BERLIM EM DOIS ATOS

Uma análise da contribuição de Walter Benjamin e Wim Wenders para retratar a capital alemã

Há precisamente 80 anos, no outono europeu de 1932, Walter Benjamin começava a escrever em Ibiza, então um calmo e aprazível balneário espanhol localizado no arquipélago Ilhas Baleares, um dos mais bonitos de seus trabalhos. Por encomenda de uma revista literária, elaborava um conjunto de textos breves sobre sua cidade natal, para a qual, epicentro do Terceiro Reich, jamais retornaria.

Infância berlinense: 1900 foi sendo construído ao longo dos anos seguintes, com material em parte já publicado, mas apenas reunido em sua inteireza em 1950, dez anos depois da morte de seu autor, quando Theodor W. Adorno se responsabilizou pela publicação da primeira versão conhecida do livro. 31 anos depois, no entanto, Giorgio Agamben encontrava uma nova versão original, a última que Benjamin escrevera, em meio a vários de seus papéis depositados na Biblioteca Nacional, em Paris, onde morou, com algumas interrupções, em seus últimos anos de vida. Benjamin os havia deixado aos cuidados de George Bataille, enquanto partia da França ocupada pelos nazistas rumo aos Estados Unidos da América, destino que nunca alcançaria. No posfácio àquela primeira edição, Adorno escreve que foram poucos os que, como Benjamin em Berlim, se reconheceram de maneira tão profunda em um território.

Dedicado a seu filho Stephan, “Infância berlinense: 1900” é um exercício de rememoração sobre a cidade de Berlim a partir de seus lugares, objetos e personagens. Isso é feito por um adulto que, aos 40 e tantos anos, revisita a própria infância. É sob o olhar de uma criança relembrada que a cidade se descortina e se esconde nos parques, ruas, escola, lugares de recreio, frente à Coluna da Vitória, um livro tão esperado ou uma fonte, com a mãe, a babá, os animais que animam a vida urbana e a imaginação infantil. O adulto rememora, negociando com sua memória, as expectativas de um passado em nada idílico, catalisando desejos e frustrações de uma época e de uma cidade.

É certo que não foram muitos os que souberam expressar a cidade de Berlim e seus labirintos sensoriais e espirituais como Benjamin. Entre eles, certamente, está Wim Wenders. Há 25 anos, depois de alcançar o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, seu filme “Asas do Desejo” ganhava os cinemas do mundo, embora em Santa Catarina tenha chegado apenas em 1990, três anos após seu lançamento.

Bruno Ganz e Otto Sander são respectivamente Damiel e Cassiel, anjos que do alto olham – em planos-sequência abertos e logo depois em enquadramentos mais fechados, todos belíssimos – a parte ocidental da cidade (o título original em alemão é “O Céu sobre Berlim”). Conversam entre si, escutam o pensamento das pessoas e passam de lugar a lugar sem serem vistos, a não ser pelas crianças e por outros eventuais anjos que, em silêncio, circulam por interiores e exteriores berlinenses.

São as angústias de cada um que Damiel e Cassiel tentam suavizar, pretendendo tornar possível seguir vivendo. Acercam-se das pessoas, tocam-nas, vigilam. Em um momento, há um jovem prestes a jogar-se do alto de um prédio. O anjo se aproxima, enquanto o suicida conversa consigo mesmo, em pensamentos soltos e impotências atrozes. Ele não lembra onde fica Wedding, bairro a Noroeste, também separado pelo muro. Não pode suportar.

Atemporais, os anjos vagam relembrando o que foi aquele território antes que a cidade se instalasse, passam de um lado a outro do muro que divide Berlim, a Alemanha e o mundo em duas partes. Não se relacionam sensorialmente, por isso são filmados por Wenders e pelo fotógrafo Henri Alekan em preto e branco. O palco não é a capital do auge da burguesia, como em Benjamin, ou a do compasso de espera do período entre as duas Grandes Guerras, como no livro “Berlin Alexanderplatz”, de Alfred Döblin. A Berlim de Wenders é a dos escombros, a cidade possível ao ser marcada também por uma terceira Guerra, a Fria. Por isso a um velho que anda pelos terrenos baldios próximos ao muro, protegido pelo anjo Cassiel, só lhe resta sentar-se em um sofá abandonado e rememorar nostálgico os cafés e passeios que antes por ali havia. Procura, possuído de lembranças, a Potsdamer Platz. Diz a si mesmo que irá até onde for necessário para encontrá-la.

Mas em Berlim, também há um pequeno circo em final de temporada e nele brilha uma trapezista, Marion (Solveig Dommartin). Ela não sabe bem o que fará quando o circo baixar a lona e os espetáculos acabarem. Flerta com o suicídio e com o erro que a levaria à morte, segue se apresentando para poucos assistentes, boa parte deles crianças, mirada por um dos anjos em especial. Damiel está entediado com sua vida sem cor e sem dor, incorpórea, insensitiva. Quer enamorar-se e então cai do céu cinzento para a vida ordinária e desejosa, mortal. O caminho pela cidade é agora terreno e colorido, é a Marion que ele leva. O que o grande dialético Adorno escreveu sobre Benjamin, vale também para Wenders.

Berlim mudou muito, embora siga enigmática e encantadora. Não é mais a cidade da alta burguesia alemã das primeiras décadas do século, nem tampouco o acúmulo de ruínas históricas do pós-guerra. Já não incorpora as utopias da primeira metade do século passado, nem a pós-utopia da Guerra Fria. Mas para aquele que caminha pela cidade, ela é ainda reconhecível por meio dos escritos do filósofo, literato e crítico, das imagens do cineasta. A alma errante das ruas, pela criança, pelo anjo, ambos desejosos: Walter Benjamin e Wim Wenders.

*Alexandre Fernandez Vaz é professor da UFSC e pesquisador CNPq.

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