FONTE:
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Com os pés na areia
Uma reflexão sobre o fascínio que a praia
exerce no escritor argentino Alan Pauls no livro “A Vida Descalço”
23 de março de 2013. | N°
1794
IDEIAS
Com os pés na areia
Uma reflexão sobre o fascínio que a praia
exerce no escritor argentino Alan Pauls no livro “A Vida Descalço”
As areias brancas infinitas e mar imenso são como a tela do cinema, generosa, à espera da projeção. Eles convidam ao empenho onírico. É nessa moldura e sobre esse conteúdo que o escritor argentino Alan Pauls compôs um ensaio de memórias e reflexões desconcertantes que acaba de ser publicado no Brasil. Em construção literária da melhor qualidade, Pauls, um amante das areias, mas muito mais do que acontece à margem dela, oferece-nos em “A Vida Descalço” (Editora Cosac Naify) uma mostra de sua capacidade ensaística e crítica, face menos conhecida no Brasil, mas nada desimportante em sua obra.
O breve volume embelezado por fotos de infância se divide em capítulos em que as reminiscências dos tantos verões são protagonistas, menos como descrição detalhada de longos períodos, antes como experiência que se ancora em acontecimentos sedimentados na lembrança. Cada episódio tratado com delicadeza ou ironia – ou com ambas – vem entremeado de reflexões complexas e agudas sobre a praia no imaginário contemporâneo e nas representações históricas. Frequentemente encontramos elaborações geniais, como aquela que vê areia e mar como intersecção de planos de combate, a guerra mostrando-se em íntima relação com o turismo. Hans Magnus Enzensberger já havia sugerido tal encontro, mas não na extensão com que Pauls o radica na praia.
Germânico nos cabelos claros e na pele rapidamente avermelhada pela severidade do sol em tempos ainda sem o uso massivo de bloqueador solar, Pauls narra com os pés sujos de areia. Para ele, a praia é a da experiência de verões em diversos pontos litorâneos, como os da infância em Villa Gesell, na província de Buenos Aires, ou os das incursões adultas a Cabo Polônio, refúgio hippie e progressista, no Uruguai. Passa também por uma aventura familiar das mais reveladoras em Copacabana, em pleno inverno, mas sob as inclemências do invencível calor carioca.
Germânico na escrita, com seus longos parágrafos e infinitas digressões coordenadas e subordinadas, Pauls também reflete sobre a praia em outro inverno, agora frio e rugoso, no litoral argentino. É aquele em que, jovem, viaja em busca das utopias antiturísticas de resistência ao vento cortante e de autossacrifício que, à base de fumo e sonho, forjam – esta é a fantasia – os alicerces das paixões políticas, literárias, pessoais.
Memória e autobiografia, com tudo de ficcional e histórico que comportam, são componentes importantes na obra de Pauls. É assim, por exemplo, na trilogia sobre a ainda recente ditadura argentina, composta por “História do Pranto”, “História do Cabelo” e “História do Dinheiro”, este último a ser publicado neste mês em espanhol. A experiência da rememoração de verões e invernos litorâneos é alimentada pela literatura e especialmente pela cinematografia que tomam a praia como tema, seja no registro romântico ou no da guerra, do acidente, do mistério, como em Michelangelo Antonioni. A praia de Pauls é, no entanto, muito mais a de Éric Rohmer e suas personagens sombrias e desencontradas, que em silêncio e com discrição ocupam as narrativas e os planos cinzentos do cineasta. Como Cabo Polônio, não como Jurerê Internacional.
Em “A Vida Descalço”, como é comum em livros memorialísticos, a infância comparece como um dos fios a conduzir a narrativa. Na praia infinita e convidativa, a criança se perde em meio a um enxame de adultos quase todos vestidos de forma semelhante, ou melhor, todos quase nus em sua semelhança. O pequeno encontra a mão salvadora na altura dos olhos, mesmo que seja ela a de um desconhecido. No balneário litorâneo, ele escolhe e compra, por primeira vez, seus livros, obras de Julio Cortázar. É também lá, mas dentro de casa, em um dia em que não pode sair para brincar porque está doente, que quando a frustração dá lugar à tranquilidade, o menino encontra, na penumbra das janelas fechadas, o enorme prazer de um novo e arrebatador encanto, a leitura.
Sobre a areia se colocam aqueles mesmos corpos quase nus que o adolescente avaliaria como uma ameaça aos frágeis liames da civilização. Livres das interdições, eles alcançam um erotismo que, no entanto, em nada sucumbe ao descontrole. A praia de Pauls só pode mesmo ser erótica se projetada na tela de cinema, sob a ameaça do kitsch sempre à espreita, quando areia e sal talvez não sejam tão incômodos ao corpo quanto são na vida real. A experiência do erotismo está reservada para o momento posterior, quando a pele queimada já repousa entre lençóis limpos e ar fresco, com a mulher desejada. Trata-se de, estando no balneário, recusar a areia, renunciando à conclusão do ato. Um Bartleby portenho. Livros e a mulher desejada, companhias para estar no conforto da cama, como uma vez assinalou Walter Benjamin.
Se a praia é o lugar de todas as projeções possíveis é porque nela se sonha muito, como Pauls assinala logo no início do livro, supondo ser isso resultado de certa abstinência imagética que Cabo Polônio, em sua privação de energia elétrica, provoca. Os sonhos vêm ao narrador na forma de filmes que não existem, seu inconsciente operando como um roteirista anárquico. Sonhos, reminiscências, ideias, imagens de pensamento, tudo a compor, no complexo ordenamento literário de Alan Pauls, esse belo “A Vida Descalço”.
*Alexandre Fernandez Vaz é professor da UFSC e pesquisador do CNPq.
ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ
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