sexta-feira, 6 de junho de 2014

Diário Catarinense, 31 de maio de 2014


DIÁRIO CATARINENSE, DC CULTURA, 31 de maio de 2014, p.3-4

A BOLA FICOU DIVIDIDA
Alexandre Fernandez Vaz 
(Professor da UFSC; Pesquisador CNPq) 

Em 1950 o Brasil sediou sua primeira Copa do Mundo de Futebol. Duas edições não se haviam realizado por causa da Segunda Guerra Mundial. Símbolo da euforia desenvolvimentista de então, o Maracanã, projetado por Oscar Niemeyer, foi palco do tão famoso quanto traumático Maracanazo, a derrota da seleção brasileira na final contra o Uruguai. Sessenta e quatro anos depois, estamos na antessala de mais uma Copa no Brasil. De 1950 para cá, só se fortaleceu entre nós a presença do futebol como um fenômeno de mobilização cultural. O Brasil venceu cinco campeonatos mundiais, viu nascer e sobreviver, aos trancos e barrancos, o mito em torno do astro Pelé, tornou-se um produtor exemplar de mão de obra qualificada para os grandes clubes europeus, entrando, de forma definitiva, no movimento sem fronteiras da indústria do espetáculo esportivo. 
Nessas seis décadas, aprendemos a ver futebol pela televisão, uma herdeira do rádio, que dele importou a aceleração narrativa. Foi também nesse tempo que nos foi ensinado a viver o futebol como um drama. Isso devemos a Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo e arauto da crônica esportiva, capaz de transformar um simples jogo em uma batalha épica, o Maracanã em uma arena romana. É dele, junto com o irmão Mário Filho, a invenção da “tensão dionisíaca” do futebol brasileiro, ao captar o espírito do tempo e a euforia do jogo e transformar a seleção na “pátria de chuteiras”. 
Meses antes do primeiro triunfo em 1958, na Suécia, o grande escritor vaticinava que seria preciso superar nosso “complexo de vira-latas”. Quatro anos depois, o Brasil se tornava bicampeão no Chile e Garrincha era o grande destaque do time que, desde o segundo jogo, não contava com o lesionado Pelé. Nelson não vacilou: "Deslumbrante país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas". No ano seguinte, também o Cinema Novo se renderia aos encantos do futebol. Joaquim Pedro de Andrade realizaria o belo documentário Garrincha, a alegria do povo, homenagem ao grande atacante mestiço, mas também ao povo simples que frequentava as “gerais” do Maracanã, onde os olhos dos espectadores ficavam na altura do gramado. É lá que se posta, com frequência, a câmera do cinema-verdade de Joaquim Pedro para mostrar as pernas tortas em ação, a coreografia dos dribles e gols. A mesma câmara percorre as partes mais populares do estádio para alcançar em preto e branco os rostos expressivos dos torcedores em júbilo ou apreensão. 
A seleção não é mais a “pátria de chuteiras” e o Maracanã foi inteiramente remodelado, já não tem mais os lugares populares de outrora. A paixão pelo futebol segue, no entanto, intacta, ainda que se observe, nas vésperas da Copa no Brasil, uma cisão entre a torcida pelo selecionado e o apoio à realização do grande evento. Não é para menos. Os valores investidos nos estádios não são tão vultuosos quanto à primeira vista pareciam, mas é certo que grande parte das arenas será pouco utilizada depois da Copa. Há também muito descontentamento com as promessas não cumpridas de melhoria na infraestrutura do país. Para além disso, a presença da FIFA como dona do evento, ao ponto de provocar mudanças em leis brasileiras e de deter o direito comercial sobre várias palavras da língua portuguesa até o final do ano de 2014, causa enorme desconforto. Economistas dizem que a Copa é um grande negócio para a FIFA, mas não para o país, cujo governo teme por sua imagem tanto pela insatisfação popular quanto por não ter cumprido os compromissos assumidos. 
São legítimas as manifestações, que quando aconteceram durante a Copa das Confederações no ano passado, receberam o apoio de alguns do jogadores da seleção. O oportunismo dos atos de violência não as desqualifica. É ótimo que possamos nos manifestar livremente, algo muito diferente de quatro décadas atrás. O Mundial de 1978, na Argentina, foi marcado por extrema vigilância policial e aconteceu enquanto se matava e torturava a poucas quadras do Estádio do River Plate, palco de muita partidas, inclusive da final. Em 1970, parte da esquerda brasileira dizia que torceria contra a seleção, cujo sucesso passaria a imagem de harmonia e felicidade fabricada pela ditadura cívico-militar. Não houve torcida contra o Brasil, como narra Fernando Gabeira em Crepúsculo do macho, sobre a experiência do exílio, e como tematiza o belo filme O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburguer. De qualquer forma, o governo Médici capitalizou o que pôde da vitória da seleção e de outros triunfos esportivos da época. 
O futebol tornou-se um negócio rentável, elitizou-se como espetáculo, a Copa talvez seja um exemplo lapidar desse processo. Mas, como mostra nossa experiência estética e afetiva – frequentemente mediada pelo cinema, pela literatura, mas também pela banalização do entretimento – o futebol é patrimônio de nossa cultura. Não é o caso de renunciarmos à paixão de torcer e ao deleite em assisti-lo, assim como tampouco devemos perder a lente da crítica. Em um e outro caso, é sempre o presente, a história, que estão em jogo. 

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