Selvino José Assmann (1945-2017)
Alexandre Fernandez Vaz!
Quando
eu ingressei na pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) para cursar o mestrado, há vinte e cinco anos, já ouvira muito
falar de Selvino José Assmann, e presenciara duas defesas de dissertação em que
ele compusera a banca examinadora, uma delas como orientador do trabalho. O que
se dizia dele nos corredores do Centro de Ciências da Educação era que se
tratava de um professor muito erudito e cuja complexidade do pensamento e de
suas aulas demandava concentração e estudo. Quando começamos o curso de
Epistemologia da Educação, disciplina obrigatória ministrada por ele, o que eu
havia escutado se confirmou. Somava-se àquilo, no entanto, a grande capacidade
de apresentar e esmiuçar conceitos. O Professor fazia isso com calma e alegria,
expondo as entranhas do próprio pensamento de maneira dadivosa, mostrando os
andaimes de uma reflexão que se concluía sempre límpida, mas nunca em forma
definitiva. A pergunta sempre persistia, ainda que em plano mais elevado. Ele
foi, junto com Detlev Claussen, a figura-chave em minha formação acadêmica.
Não foram poucas as vezes em
que o acompanhei depois da aula até o estacionamento, encompridando a boa
conversa. Numa delas, desembrenhou a falar de Michel Foucault, destacando a
importância dos cursos que o grande filósofo ministrara nos últimos anos de vida
e que, pouco a pouco, vinham à luz na França em edições transcritas. Em tempos
prévios à internet, Selvino se mantinha, como poucos, informado sobre o que
acontecia internacionalmente. À vasta cultura filosófica, que ia de Platão a
Agamben, passando por Vico, Abelardo, Maquiavel, Rousseau, Kant, Hegel, Marx,
Adorno, Foucault e tantos outros, agregava-se o conhecimento de diversas
línguas estrangeiras, além do domínio completo do Português. Com isso, em seus
textos não há palavra desperdiçada e suas traduções são de uma precisão e
beleza impressionantes.
O Mestre emprestava livros e
não os pedia de volta. Tinha consciência das muitas perdas, mas avaliava que
não era tão ruim que isso acontecesse, na esperança de que alunos esquecidos da
devolução houvessem, ao menos, lido os volumes perdidos. Voltava a comprá-los e
a sublinhar trechos e fazer suas anotações à margem.
Selvino
teve uma carreira exemplar na UFSC, onde ingressou em 1976, de onde se
aposentou compulsoriamente aos setenta anos de idade, e chegou a Professor
Titular (1992) e Professor Emérito (2016), sempre no Departamento de Filosofia,
mas com atuação em vários programas de pós-graduação. Atuou na Educação,
Direito, Administração, Enfermagem, Filosofia, parece que não havia algo sobre
o qual ele não pudesse pensar. Junto com outros, criou e foi um permanente
entusiasta do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas,
que mais de uma vez, e contra suas inclinações, coordenou. Nele constituiu uma
parceira das mais interessantes e inusitadas com Héctor Ricardo Leis, com quem
ministrou aulas e escreveu uma série de artigos depois reunidos em livro, as Críticas
minimalistas (Editora Insular, 2007). Foram fraternos
e divertidos amigos.
Quando
me tornei professor da pós-graduação, foi com Selvino que ministrei meu
primeiro seminário. No ano seguinte, com carga horária alta, como
frequentemente acontecia, preferiu não repetir a atuação como docente, mas
prometeu ir às aulas quando pudesse. Foi a todos os encontros e, sentado como
aluno, escutava, anotava e perguntava, contribuindo sempre com sua perene
lucidez. Senti-me não apenas lisonjeado por sua presença, mas por seu extremo
respeito por minha condição de jovem professor da pós. Estivemos juntos em
vários outros seminários, inclusive em um que considero central para minha
reflexão posterior, a primeira edição de Sujeito, Poder e Política, no
segundo semestre de 2004. A companhia dele tornou muito menos árdua a leitura
crítica de Homo Saccer I: o poder soberano e a vida nua, de
Agamben, assim como nos proporcionou o primeiro contato com O
aberto: o homem e o animal, do mesmo autor, em tradução
informal com o qual nos presenteou. Um luxo. Mais tarde, viria a ser o
principal tradutor do filósofo italiano ao Português.
Itália – em Roma chegou ao
mestrado e ao doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense,
além de ao mestrado em Teologia pela P. U. Gregoriana. Suas lembranças de lá
eram as melhores, ouvi-las, uma delícia. Entre tantas, o café no fim de tarde,
ao pé do edifício onde morava, com conhecidos ocasionais, mas nem por isso
menos importantes. Gente que não imaginava que ele escrevia uma tese sobre a
obra do filósofo mexicano Leopoldo Zea. A Itália foi ainda o destino de um
estágio pós-doutoral imaginário, nunca concretizado, com Norberto Bobbio.
Selvino
frequentemente tomava a própria vida como situação exemplar para expressar a
consciência histórica, fazendo justiça à herança hegeliana que ele tão bem
conheceu e ensinou. Era nessa moldura que relatava suas experiências como
analisado e, muito amorosamente, a vida com Helena e Moira, companheira e
filha.
Certa vez o encontrei no
térreo de um dos prédios do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, ele
procurava um telefone público. Moedas à mão, respondeu à ingenuidade do menino
que eu era sobre por que não fazer a chamada telefônica de sua sala de
trabalho. Sem afetação, disse que se tratava de interesse pessoal, ele não se
sentiria bem em realizá-la de um aparelho da UFSC. Este foi Selvino Assmann,
meu orientador de mestrado e meu Mestre, que fez as indicações fundamentais de
leitura, que foi generoso ao me ensinar a pensar muito melhor do que antes de
conhecê-lo. Foi meu amigo.
Frankfurt am Main, outubro de
2017.
Um comentário:
Lindo texto, Alexandre. Grande e Generoso Selvino. Sem falsa afetação, sem sucumbir à fogueira de vaidades tão comum...um ser humano daqueles raros...vai fazer muita falta... E através dele cheguei a outro grande mestre, Alexandre Fernandez Vaz. Obrigada a vocês dois. Viva!!
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