terça-feira, 19 de julho de 2011

25 de junho de 2011 | N° 9211Alerta  Voltar para a edição de hoje

CINEMA

Nostalgia da modernidade

Com lirismo e ironia, Woody Allen reafirma excelência em Meia-Noite em Paris


Na metade dos anos 1980, Woody Allen dirigiu A Rosa Púrpura do Cairo. Nele, uma aficionada pelo cinema deixa-se mesclar com as narrativas que a fazem subtrair-se, por algumas horas, do insosso cotidiano ao qual parece estar destinada. Entre o arsenal de imagens montadas que formam o filme e o arquivo onírico de seus próprios sonhos, a moça visita nostalgicamente o cinema americano da metade daquele século.

Mais de duas décadas depois, o cineasta não homenageia o seu país e a cidade das cidades da segunda metade do século 20, Nova York. Em Meia Noite em Paris (confira roteiro de cinena no caderno Variedades) ambienta seu cinema novamente na Europa. No filme, um bem sucedido, mas infeliz roteirista de cinema de Hollywood se encontra na capital francesa com a noiva, os futuros sogros e um casal de amigos dela. Possuído pelo desejo de escrever um livro e livrar-se de uma vida que considera medíocre, Gil (Owen Wilson, cuja interpretação é quase mimética em relação ao que seria a do diretor se também atuasse em seu filme) sente-se, no entanto, desestimulado pelos seus parceiros de viagem. As obviedades da noiva (Rachel McAdams) e o pedantismo do amigo e antiga paixão (Michael Sheen), convidado a uma palestra na Sorbonne, a estupidez da futura sogra (Mimi Kennedy) e o conservadorismo extremo do marido desta (Kurt Fuller) desanimam continuamente o aspirante a escritor. Gil quer viver em Paris, como seus ídolos dos “loucos anos vinte”, mas precisa suportar toda a pressão dos seus acompanhantes, entre os quais se destaca o grotesco pai da noiva, a sugerir que o noivo da filha é comunista, a odiar tudo o que é francês na mesma medida em que idolatra a política belicista, a comida sem gosto e os vinhos californianos.Mas Gil, de alguma forma, resiste a tudo isso e certa noite, um tanto embriagado, encontra-se em um carro antigo cujos ocupantes convidam-lhe para uma alegre incursão pelos labirintos de festas e personalidades boêmias, diletantes, dispostas a viver intensamente os encantos do tempo presente. Quando se dá conta, lá está o regularíssimo norte-americano às voltas com compatriotas seus, em uma esfumaçada festa onde é recebido por Zelda e Scott Fitzgerald. Sim, finalmente ele encontrou os anos 1920, que passa a visitar em noites estupendamente deliciosas, nas quais a convivência com os Fitzgerald, mas também com Pablo Picasso, Gertrud Stein, SalvadorDalí, Ernest Hemingway e Luis Buñuel lhe abrirão as portas não exatamente para ser um escritor, mas para buscar a coragem de assumir seu próprio desejo. Destino de todos naqueles anos, Paris de fato só podia mesmo ser uma festa a comemorar o alívio de uma recém terminada guerra, mas também a celebrar todo tipo de revolução, estética e política.A ótima direção de atores, a fotografia ortodoxa e o simples e bom roteiro não deixam que as obviedades sobre Paris (os pontos turísticos, os sonhos de consumo do protagonista, a presença de Carla Bruni em papel secundário), façam o filme perder força. Ao contrário, mesmo sendo elas concessões eventualmente dispensáveis, fazem uma homenagem à cidade e compõem bem o caráter ingênuo do protagonista. Apaixonado pela cidade e pela bela Adriana (Marion Cotillard), musa indecisa entre Hemingway e Picasso, é com ela que Gil recua ainda mais na experiência da memória idealizada do passado, ao visitar aquele que para a garota é o tempo dourado de Paris, a Belle Époche do final do século 19.O que importa a Gil (e a Adriana) é esse deslocar-se no tempo como recordação do que não foi vivido, antídoto contra um presente insuportável. Viagem idealizada, sem dúvida, mas a dar forças para encarar, sem medos, o contemporâneo. Se o cinema é sempre contraste entre luz e sombra, então é na cidade noturna que ele encontrará a conciliação possível. Para viver é preciso não ter medo da morte.* Professor da UFSC e pesquisador CNPq

ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ *
FONTE: http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3364950.xml&template=3898.dwt&edition=17403&section=1323

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