terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Notícia - Anexo Ideias

“Beatriz”, de Cristovão Tezza

Novo livro do escritor catarinense reúne contos sobre as vicissitudes da escrita e da reescrita

 

“Uma teimosa polaca curitibana, também misturada com português”, diz de si mesma a protagonista da maior parte dos sete contos, reescritos ou inéditos, reunidos no mais recente livro de Cristovão Tezza, “Beatriz”. Nascido em Lages, o autor mora desde criança em Curitiba, cidade que costumeiramente oferece palco e moldura para seus livros. Beatriz, a moça que empresta nome ao volume, não foge à regra, passando seus dias e noites na capital paranaense, em busca de pequenos êxitos profissionais e amorosos. Ela é uma jovem chegando aos 30 anos, que vive sozinha e soma, em contabilidade afetiva, a morte dos pais a um casamento desfeito.

Tendo frequentado o curso de letras e exercendo o ofício de revisora de textos e professora particular de português, Beatriz vive às voltas com gente cuja atividade tem a ver com a escrita: um mestrando pouco alfabetizado; um aluno particular que anda carente de gramática e de companhia feminina; escritores que vivem de palestra em palestra enfrentando plateias desavisadas; um dono de sebo; e aspirantes a autor.

Além dos contos, o livro tem um inusitado prólogo, texto dos mais interessantes ao promover um eco não ficcional à tessitura dos contos que seguem. Além de indicar a origem e o percurso de cada uma das narrativas, o autor nele expõe o nexo entre “Beatriz” e “Um Erro Emocional”, seu livro anterior, mostrando o impulso que lhes é comum. Tezza relata, em um jogo de temporalidades difusas que amplia a complexidade das personagens, como o romance emerge do primeiro conto. É a profissão de escritor, captada ironicamente na memória do próprio autor, que surge no prólogo e espalha-se no livro, balizando as experiências reais e imaginárias que ganham forma literária. Como já fizera em outras oportunidades, em especial no premiado “O Filho Eterno”, o curitibano não poupa a si da fina e bastante cáustica autocrítica – exercício de quem conhece bem os riscos que correu e o preço que pagou para alcançar a condição de escritor profissional.

Nada casual que Paulo Donetti, o escritor de “Um Erro Emocional”, ressurja em “Beatriz” como personagem central de dois contos, além de manter-se como constante sombra para a moça ao longo do livro. É ele o ídolo que ela discretamente encontra por primeira vez em “Beatriz” e o escritor, em cena de ciúmes e pequenas rivalidades entre escritores na roda-viva dos eventos culturais, mas também o amigo eventualmente evocado nesta ou naquela lembrança e na pergunta sobre o que pensaria se soubesse o que se passa com Beatriz. Esta, por sua vez, tem sua voz constantemente entrecortada por outras personagens, mas, em especial, pelo que supõe que poderia dizer se algo que espera ou teme acontecesse, em dicção que alimenta o trânsito constante entre imaginação e realidade ficcional. O futuro do pretérito, aliás, é o tempo que faz da leitura de Beatriz uma invenção de possibilidades, de discursos que encerram frases quase ditas a dizer de desejos às vezes malogrados.

Tezza é um mestre nas descrições das angústias, das formas como suas personagens enfrentam as esquisitices que podem ser muito mais fruto da própria paranoia, de fantasias negativas, do que francamente reais. Não é diferente com “Beatriz”, cujos contornos vão ganhando densidade e complexidade no ritmo da sucessão dos contos; movimento que, junto com referências que voltam ao longo deles – Donetti à frente – faz lembrar a dinâmica do romance, forma que consagrou o autor. Nesse percurso, a moça que se sente inadequada não deixa de ver-se assim, mas encontra suas próprias estratégias de enlaçamento com o mundo. Nada mal para alguém que, antes de dar-se conta de que o cosmopolitismo pode estar na esquina, surpreende-se, ao rememorar suas viagens, que “incrivelmente nenhuma vez [estivera] em Florianópolis (exceto quando era tão criança que não restou nada)”.

Se os contos que compõem “Beatriz” são variações sobre as vicissitudes da escrita e da reescrita, é talvez porque Donetti já dissera à moça que “sempre é melhor escrever do que fazer”. Mas Beatriz não acredita nisso, para sorte dela. E dos leitores de Cristovão Tezza, que assim podem desfrutar de sua literatura encarnada e dessa sintaxe-corpo que só a muito custo e perto do fim, como convém ao conto, leva ao discreto apaziguamento. Então ela permite que a respiração do leitor, que não percebera a alteração, novamente se tranquilize, mesmo sem perder a tensão que toda boa palavra é capaz de expressar.

*Alexandre é professor da Ufsc e pesquisador do CNPq.

ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ*


FONTE: http://www.clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a3636733.xml&template=4187.dwt&edition=18823&section=1361

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