24 de junho de 2012. | N° 1534
FILME
Polanski, um deus da carnificina
No novo filme do diretor, que se passa dentro de um apartamento, um incidente corriqueiro dá início a acusações entre dois casais de origens sociais e culturais diferentes
O
ponto de partida é algo trivial. Em Nova York, dois casais, Penelope
(Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly) e Nancy (Kate Winslet) e Alan
(Christoph Waltz), se encontram em um apartamento para resolver um
problema entre os respectivos filhos, ambos com 11 anos. Uma das
crianças agredira a outra com um bastão, provocando-lhe um ferimento na
boca e a perda de dois dentes. Estão todos de acordo em relação ao
reprovável comportamento de Zachary (Elvis Polanski), o menino agressor,
filho de Nancy e de Alan. Tudo estaria resolvido com a conversa e com
um posterior pedido de desculpas de Zachary a Ethan (Eliot Berger),
filho do casal anfitrião. Mas não é assim, nem poderia ser, em se
tratando de um filme de Roman Polanski.
“Deus da Carnificina” (Carnage) é o mais recente filme do diretor franco-polonês. Com cenografia despojada, não tão incomum na longa e exitosa carreira que o faz ser um dos cineastas mais importantes em atividade, o filme quase denuncia sua origem teatral, a peça “God of Carnage”, escrita pela francesa Yasmina Reza. Com Polanski, ela assina o roteiro do filme.
Os diálogos do quarteto, que começam civilizados e um tanto constrangidos, pouco a pouco descambam para um rosário de insinuações rancorosas e acusações mútuas, a maior parte delas de caráter moralista e esnobe. O anfitrião é vendedor de produtos de ferragem que se vê acusado pela esposa do outro por ter abandonado um animal de estimação da filha. O marido desta, por sua vez, é advogado da indústria farmacêutica e se esmera em defender um cliente frente às acusações de um artigo publicado em prestigiosa revista acadêmica. As mulheres não ficam atrás. A casada com o advogado diz-se, vagamente, corretora de investimentos, enquanto a outra se dedica a atividades “politicamente corretas”, como preocupar-se – de longe, é claro – com problemas da África.
São todos fracos, a começar pelo fato de que não podem renunciar à presença uns dos outros. Todas as muitas tentativas de ir embora e acabar com aquela situação constrangedora, que inclui cafés e conversas em relação às quais se finge interesse, se mostram infrutíferas. Rapidamente as respostas neuróticas se instalam, impedindo que os casais se desgrudem, tornando o tema dos filhos secundário e quase esquecido. Nem mesmo a escatologia protagonizada por Nancy, ao vomitar na roupa do marido, no chão do apartamento e nos livros de arte sobre a mesa de centro, é suficiente para desabotoar o enredamento entre os quatro. Os casais, e cada um individualmente, vão se mostrando sem peias na medida em que uma claustrofobia às avessas vai rompendo barreiras. “Eu creio no deus da carnificina”, diz Alan a Penelope, lá pelas tantas. Mas nem mesmo ele, apesar de todo o cinismo e da frieza (ou do realismo), consegue se livrar dos donos do apartamento ou mesmo da própria mulher.
Envoltos em pequenezas, como todos os medíocres, ali está a “classe média” norte-americana. As interpretações de Kate Winslet e da excelente Jodie Foster, que apenas parecem um pouco forçadas, potencializam o caráter farsesco do comportamento do “cidadão de bem”. Como em todo o mundo ocidental, a “classe média”, apesar de tão ciosa de si mesma, desmorona à primeira ameaça. Não é casual que o álcool seja um elo a construir alianças em princípio inimagináveis, como a entre os dois homens, fartos do comportamento autoritário de Penelope e da hipocrisia de Nancy. Ou, complementarmente, a de solidariedade entre elas, exercida no desprezo pelos respectivos maridos, demasiadamente ocupados consigo mesmos para poderem, de fato, relacionar-se com elas. O único contato com o mundo exterior é protagonizado, por sua vez, pelos dois homens: Alan não para de usar o celular para orientar seus clientes em apuros, enquanto Michael recebe vários telefonemas da mãe doente para, final das contas, colocá-la para falar com o agora parceiro e especialista em remédios.
Não deixa de ser curioso que o filme, rodado na Europa, seja sobre os Estados Unidos da América e o tradicional moralismo de sua puritana cultura, país para onde Polanski não viaja desde que de lá saiu às pressas, em 1978, condenado por manter, no ano anterior, relações sexuais não consentidas com uma modelo de treze anos. País também em que sua esposa, Sharon Tate, no oitavo mês de gravidez, foi brutalmente assassinada por um grupo de fanáticos a mando de Charles Mason, em 1969. Sobrevivente do Gueto de Varsóvia, dos loucos anos 1960 e 1970, do desencanto contemporâneo, Polanski interpreta e expressa como poucos o tempo que lhe coube viver. Não é diferente com “Deus da Carnificina.”
“Deus da Carnificina” (Carnage) é o mais recente filme do diretor franco-polonês. Com cenografia despojada, não tão incomum na longa e exitosa carreira que o faz ser um dos cineastas mais importantes em atividade, o filme quase denuncia sua origem teatral, a peça “God of Carnage”, escrita pela francesa Yasmina Reza. Com Polanski, ela assina o roteiro do filme.
Os diálogos do quarteto, que começam civilizados e um tanto constrangidos, pouco a pouco descambam para um rosário de insinuações rancorosas e acusações mútuas, a maior parte delas de caráter moralista e esnobe. O anfitrião é vendedor de produtos de ferragem que se vê acusado pela esposa do outro por ter abandonado um animal de estimação da filha. O marido desta, por sua vez, é advogado da indústria farmacêutica e se esmera em defender um cliente frente às acusações de um artigo publicado em prestigiosa revista acadêmica. As mulheres não ficam atrás. A casada com o advogado diz-se, vagamente, corretora de investimentos, enquanto a outra se dedica a atividades “politicamente corretas”, como preocupar-se – de longe, é claro – com problemas da África.
São todos fracos, a começar pelo fato de que não podem renunciar à presença uns dos outros. Todas as muitas tentativas de ir embora e acabar com aquela situação constrangedora, que inclui cafés e conversas em relação às quais se finge interesse, se mostram infrutíferas. Rapidamente as respostas neuróticas se instalam, impedindo que os casais se desgrudem, tornando o tema dos filhos secundário e quase esquecido. Nem mesmo a escatologia protagonizada por Nancy, ao vomitar na roupa do marido, no chão do apartamento e nos livros de arte sobre a mesa de centro, é suficiente para desabotoar o enredamento entre os quatro. Os casais, e cada um individualmente, vão se mostrando sem peias na medida em que uma claustrofobia às avessas vai rompendo barreiras. “Eu creio no deus da carnificina”, diz Alan a Penelope, lá pelas tantas. Mas nem mesmo ele, apesar de todo o cinismo e da frieza (ou do realismo), consegue se livrar dos donos do apartamento ou mesmo da própria mulher.
Envoltos em pequenezas, como todos os medíocres, ali está a “classe média” norte-americana. As interpretações de Kate Winslet e da excelente Jodie Foster, que apenas parecem um pouco forçadas, potencializam o caráter farsesco do comportamento do “cidadão de bem”. Como em todo o mundo ocidental, a “classe média”, apesar de tão ciosa de si mesma, desmorona à primeira ameaça. Não é casual que o álcool seja um elo a construir alianças em princípio inimagináveis, como a entre os dois homens, fartos do comportamento autoritário de Penelope e da hipocrisia de Nancy. Ou, complementarmente, a de solidariedade entre elas, exercida no desprezo pelos respectivos maridos, demasiadamente ocupados consigo mesmos para poderem, de fato, relacionar-se com elas. O único contato com o mundo exterior é protagonizado, por sua vez, pelos dois homens: Alan não para de usar o celular para orientar seus clientes em apuros, enquanto Michael recebe vários telefonemas da mãe doente para, final das contas, colocá-la para falar com o agora parceiro e especialista em remédios.
Não deixa de ser curioso que o filme, rodado na Europa, seja sobre os Estados Unidos da América e o tradicional moralismo de sua puritana cultura, país para onde Polanski não viaja desde que de lá saiu às pressas, em 1978, condenado por manter, no ano anterior, relações sexuais não consentidas com uma modelo de treze anos. País também em que sua esposa, Sharon Tate, no oitavo mês de gravidez, foi brutalmente assassinada por um grupo de fanáticos a mando de Charles Mason, em 1969. Sobrevivente do Gueto de Varsóvia, dos loucos anos 1960 e 1970, do desencanto contemporâneo, Polanski interpreta e expressa como poucos o tempo que lhe coube viver. Não é diferente com “Deus da Carnificina.”
Alexandre Fernandez Vaz, professor da UFSC, pesquisador do CNPq, alexfvaz@uol.com.br.
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