segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

HERMENÊUTICA DA MACHEZA. SOBRE FIM DE FERNANDA TORRES

(A NOTÍCIA, JOINVILLE – ANEXO IDEIAS, CAPA, 11 E 12.01.2014) 

Alexandre Fernandez Vaz (Professor da UFSC; Pesquisador CNPq) 

Como colaboradora de jornais e revistas, a atriz Fernanda Torres tem publicado textos que surpreendem pela qualidade literária e pelo olhar desconcertante. O ponto de partida geralmente é a experiência pessoal superada pela analítica aguda do presente. Faz isso com uma escrita que não perde a delicadeza, mas não se furta de dar voz à crueza, à força e à fragilidade das personagens cuja alma perscruta. O mosaico construído, cujo pano de fundo é o país e suas complicações, mostra mais que interpreta, deixando que as peças, ao se colocarem umas frente às outras, digam algo sobre espantosa experiência de viver.  

O final do ano passado assistiu à estreia de Fernanda na literatura ficcional. “Fim” narra a história de cinco amigos, desde que entram na vida adulta até a derrocada final. Vivem do encontro, morrem em desencontro, quando as frágeis linhas que mantinham a sincera amizade vão se desfazendo até sumirem, sobrevivendo, no mais das vezes, apenas como melancolia nas recordações. A narrativa vai se alternando entre o discurso indireto e a voz de cada um dos varões. As mulheres que com eles viveram dores e delícias também têm força como personagens, mas não é delas que principalmente se fala. Ponto de partida ou de chegada, a morte é o balizador principal e definitivo, a derrota para aqueles que aceitaram ou não o convite para viver intensamente, em especial as décadas de 1960 e 1970: política, drogas, sexo mais livre, terapias alternativas, e por aí vai. A abordagem e o tom remetem ao Nelson Rodrigues das tragédias cariocas, mas a dicção às vezes faz lembrar o machadiano Carlos Heitor Cony. 

Álvaro, Neto, Ciro, Sílvio e Ribeiro, têm origens e destinos diferentes, mas a vida compartilhada delimita, em grande parte, o horizonte de expectativas de cada um. “Eram homens maduros e desesperados. Viviam o apogeu do macho e o pressentimento da inevitável queda.”, escreve Fernanda ao narrar o encontro promovido por Sílvio, o despudorado, aquele que aceitou romper com os costumes aceitáveis e as boas intenções, deixando-se levar por um hedonismo sem limites, topando pagar o preço do prolongado frenesi. A pretexto de despedir-se dos amigos, ele conseguira convites para uma festa chique, regada, deste antes do seu início, pelo uso das diversas drogas estimulantes.  Noite decisiva, marcando a primeira ruptura do grupo de amigos, a farra termina na residência do anfitrião, cada qual com a mulher que lhe coube. Ciro, como sempre, com a mais bonita. Mas nem todos conseguem, dois deles nem sequer chegam ao apartamento da Gávea. Entrando na meia-idade, a sensação de que não há mais tanto tempo afrouxava os limites. 

É notável a capacidade de Fernanda de mergulhar no espírito masculino, com seus temores e caprichos. Cada alma é explorada nos limites das angústias, dos sofrimentos dos quais padece, frequentemente de maneira inconfessável, vendo o fim cada vez mais próximo. Como é praxe, os homens passam a limpo, no segredo do pensamento, a própria história, matizada pelas elucubrações e projeções mentais sobre os amigos, fatos, mulheres que amaram ou que não puderam amar, fracassos familiares, miséria moral e canalhices, solidão. Constroem, como podem, a memória do que viveram. 

Ao mimetizar as perturbações e desejos de cada um, rancores e arrependimentos, melancolia e ressentimentos, e, talvez, principalmente, medo e frustração, Fernanda oferece forma, pela linguagem, a esse vasto material disponível que é a alma masculina. Chega com isso a uma crônica do nosso tempo pela voz de uma geração que vemos chegar ao ápice para depois declinar e morrer. Mas dizer isso é pouco. “Fim” é uma hermenêutica da macheza. De seus temores e da autoconfiança postiça. Produzindo forma literária sobre esse universo, Fernanda Torres nos oferece um livro arrebatador sobre o homem de qualquer tempo. 

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