segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

MÁSCARA DA EDUCAÇÃO

(DIÁRIO CATARINENSE – CULTURA – CAPA – 11.01.2014) 

Alexandre Fernandez Vaz (Professor da UFSC; Pesquisador CNPq)  

Onde parece haver talento e dom intelectuais reside estratificação social e herança cultural, perpetuando-se as distinções de classe sob a máscara da educação democrática. Eis o que mostram os sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em seu breve e contundente Os herdeiros: os estudantes e a cultura, publicado há quase meio século e recém lançado no Brasil pela Editora da UFSC. 

Trata-se de leitura exigente, tanto pela quantidade de questões que os autores abordam, quanto pelo rigor com que o fazem. Certa aridez da redação, que a tradução de Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle sabiamente manteve, não prejudica o fluxo de exposição, mas convida à leitura atenciosa. 

Com três capítulos e um texto conclusivo, mais dois apêndices com tabelas e comentários sobre elas, o livro apresenta análises sobre a vida dos estudantes franceses, a partir de dados coletados por institutos de pesquisa e enquetes encomendadas. Apontando tendências históricas e sociais, Bourdieu e Passeron examinam a vida estudantil de modo a fazer ver que a “experiência universitária” é tão variada quanto são as diferenças e distinções entre os estudantes, venham eles de Paris ou da província, sejam moças ou rapazes, componham famílias de alta ou baixa extração, com mais ou menos experiências políticas e culturais. A pesquisa mostra que o ensino gera distintas expectativas em diferentes estratos sociais, conforme origens e projetos em jogo: diletantismos nos filhos das elites, para os quais a distinção entre lazer e trabalho, conquanto sejam estudantes, é inexistente; nada muito mais que preparação para vida profissional para estudantes que trabalham para o próprio sustento, vindos de camadas sociais mais baixas. 

É sob tal base que questionam o dom e o mérito entre aqueles que são vistos como melhores alunos, ou que frequentam os cursos de maior prestígio. Com grande sensibilidade analítica, os autores mostram que as experiências não escolares são decisivas para o sucesso dos estudantes, apontando o paradoxo de uma educação que valoriza discursivamente o  ensino da cultura erudita, mas a toma como requisito prévio à escolarização, eternizando, assim, a exclusão social. Reside aí a reprodução das desigualdades, já que “Para uns, a aprendizagem da cultura da elite é uma conquista, pela qual se paga caro; para outros, uma herança que compreende ao mesmo tempo a facilidade e as tentações da facilidade.” 

A herança cultural é, sobremaneira, a da família e do seu entorno. Daí a crítica à educação formal, reforçadora de certa mistificação das atividades intelectuais em detrimento à preparação profissional, processo alimentado por professores que se têm em alta conta e por estudantes de estratos sociais superiores. Bourdieu e Passeron predicam uma educação como expressão de transformações mais amplas na sociedade. Defendem uma escola que leve a sério, com suas técnicas e métodos, o ensino da cultura erudita para todos, suplantando as dificuldades decorrentes da posição social e permitindo, de fato, o acesso igualitário à Universidade. 

Os herdeiros é um clássico escrito em um tempo em que a Sociologia era ainda “um esporte de combate”, como certa vez a chamou o próprio Pierre Bourdieu. Isso já justificaria sua publicação e leitura entre nós. Mas, seus temas e abordagens são mais que atuais para o Brasil, onde a naturalização de privilégios para os “herdeiros”, inclusive na universidade pública, ainda é um desafio a ser enfrentado. 

Nenhum comentário: