domingo, 17 de fevereiro de 2013

A NOTÍCIA - 16 de fevereiro de 2013. | N° 1764

EXPRESSÃO ESCRITA

A falta que faz uma intelectual combativa

Susan Sontag fez da palavra escrita a expressão de um inconformismo que desconhecia fronteiras temáticas e geográficas

Em 1977, respondendo ao questionário de uma revista francesa, Susan Sontag escreveu: “Os intelectuais têm a tarefa de Sísifo de continuar a encarar (e defender) um padrão de vida mental, e de discurso, que não seja o niilista, preconizado pelos meios de comunicação de massa.” Como poucos, ela levou a sério esse projeto que a orientou por toda a vida. No dia 16 de janeiro, Susan teria completado 80 anos se não tivesse morrido em 28 de dezembro de 2004. Como costuma acontecer com os fatos ocorridos entre o Natal e o Ano-novo, a morte foi discretamente anunciada. A falta que sua ausência provoca, no entanto, é notável.


Nascida em Nova York, cidade na qual passou a maior parte da vida, Susan foi uma estadunidense com olhos para seu país, mas também para a Europa, continente que adotou como referência intelectual e onde esteve por diversas vezes, frequentemente por períodos longos. Roland Barthes, Walter Benjamin e Jean-Luc Godard, entre outros, lhe foram modelos de crítica e expressão. Não por acaso, imagem e palavra se combinaram de forma singular em sua obra, de forma que o interesse pela fotografia, pelo cinema e pela literatura a acompanhou até a morte. Foi assim também com o Brasil, país em que seus livros ganharam importante divulgação e que visitou mais de uma vez, chegando a nele projetar a realização de uma ópera em parceria com o paisagista Burle Marx. Ao seu maior escritor, Machado de Assis, dedicou um belo ensaio que apareceu como prefácio de uma edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, livro que considerou uma “influência retrospectiva”.

Intelectual de múltiplos recursos, escritora prolífica que parece ter se interessado por tudo o que era possível, Susan encontrou no ensaio sua forma privilegiada de expressão, ainda que tenha dito que seriam os poucos romances aquilo que mais lhe agradara em sua vasta produção, que inclui contos, diários, textos para teatro, entrevistas, filmes. Combinando valor estético e decisão política, fez da palavra um exercício de crítica e intervenção, o que a fez abordar uma profusão de assuntos com uma alta dose de inconformismo em relação à injustiça e à hesitação. Destemida, parecia não ter fronteiras ao visitar Hanói em solidariedade aos vietcongues, em plena guerra que seu país travava com o Vietnã e ao montar Beckett em uma Sarajevo destruída e sitiada pelos sérvios.

O mesmo espírito mostrou ao não recuar frente a polêmicas importantes, como as com Camille Paglia e Jean Baudrillard, ou ainda ao recusar qualquer simplificação analítica sobre as ações dos Estados Unidos no Oriente Médio, principalmente depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Susan foi severa crítica não apenas do governo Bush e de sua cruzada pseudorreligiosa, marcada pela guerra sem fim como prevenção contra o demoníaco, mas, ao longo de toda sua vida, à posição cultural, bélica e política dos Estados Unidos e de boa parte de seus habitantes frente ao mundo.

Um exemplo dessa potência política é sua interpretação das imagens de internos sendo torturados e humilhados na prisão de Abu Ghraib, onde muitos chegaram sem processo jurídico formal e sem o reconhecimento de que eram prisioneiros de guerra, que foram para ela decisivas. Em tempos em que tudo pode ser documentado para a posteridade e transmitido em tempo real, soldados fotografaram prisioneiros transformados em objetos da própria excitação sádica.

As imagens correram o mundo e o governo do país invasor fez questão de dizer que elas eram abomináveis, esquecendo-se de que o que era intolerável é o que elas representavam, os fatos concretos que perpetuavam. Não foi por casualidade que a preocupação de muitos tenha sido não o que aconteceu, mas que fotografias houvessem sido feitas e fossem divulgadas. Restaria ainda saber, nos processos de anestesia a que todos somos submetidos pela cultura do espetáculo e do culto à brutalidade, o quanto as imagens de Abu Ghraib, como marcas de nosso tempo, não se inspiram, como sugere Susan Sontag, na simples pornografia disponível na internet.

Recentemente, depois dos ensaios e conferências restantes de seu espólio, têm vindo a público os diários pessoais de Susan. Eles são muito elucidativos para quem quer acompanhar o desenvolvimento de uma vida dedicada a pensar de forma combativa, inclusive em tensão consigo mesma. São notas de todo tipo, em que a menina prodigiosa que encontrava nos livros refúgio à inadequação familiar vai se revelando em um pensamento pleno de sangue e desejo, como alude o subtítulo do segundo e último volume até agora publicado.


*Alexandre Fernandez Vaz é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do CNPq.

FONTE
http://clicrbs.com.br/anoticia/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4045209.xml&template=4187.dwt&edition=21396&section=1361

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